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POR UMA ETNOGRAFIA DOS SISTEMAS DE SOM DO FUNK FOR A FUNK SOUND SYSTEMS ETHNOGRAPHY Paulo Menotti Del Picchia 1 Resumo: O presente artigo apresenta uma etnografia dos fluxos funk em Heliópolis, bairro da Zona Leste de São Paulo. A etnografia explorou a metodologia de pensar a vida social do bairro a partir da música […]

POR UMA ETNOGRAFIA DOS SISTEMAS DE SOM DO FUNK

FOR A FUNK SOUND SYSTEMS ETHNOGRAPHY

Paulo Menotti Del Picchia 1

Resumo: O presente artigo apresenta uma etnografia dos fluxos funk em Heliópolis, bairro da Zona Leste de São Paulo. A etnografia explorou a metodologia de pensar a vida social do bairro a partir da música funk e das coisas encontradas na pesquisa de campo, relacionados a esse fazer musical, que informavam narrativas relevantes para o entendimento das agências sociais da música. Os objetos em questão são os diversos tipos de sistemas de som presentes nos fluxos de rua. Os sistemas de som se mostraram agentes sociais musicais fundamentais para o fluxo de funk acontecer, e dentre suas agências podemos destacar uma demarcação musical da periferia. Trago também uma experimentação com uma forma narrativa audiovisual que caminha em paralelo com o texto escrito. Trata-se de uma playlist de pequenos filmes disponível no Youtube, chamada “Diário-fragmento” com pequenos fragmentos filmados do campo que enriquecem a descrição textual.

Palavras-chave:Antropologia da Música; Fluxo Funk; Sistema de Som.

Abstract: This article presents an funk flows ethnography in Heliópolis, an East Zone of São Paulo district. The ethnography explored the methodology of thinking about district social life from the funk music and the things found in the research field, related to this musical making, which informed relevant narratives to the understanding of the social agencies of music. The objects in question are the various types of sound systems present in the street streams. Sound systems have proved to be fundamental social musical agents for the funk flow to happen, and among their agencies we can highlight a musical marking of the periphery. I also bring an experiment with an audiovisual narrative form that goes in parallel with the written text. This is a playlist of small films available on Youtube, called “Diary- fragment” with small fragments filmed from the field that enrich the textual description.

Keywords: Funk Flow; Music Anthropology; Sound System.

INTRODUÇÃO

“Mano eu deixo os graves estourarem mesmo, porque senão não toca nos carros, senão a galera não toca no fluxo. Tem que bombar o grave!!” (DJ FB, comentando a mixagem dos kicks2 na produção do funk “Calabouço da Ganância” de MC Tiiga, dia 30/11/2016).

Esta fala é de um produtor musical de funk de São Paulo, chamado DJ FB (22 anos) entrevistado em seu estúdio na Avenida Sapobemba, Zona Leste de São Paulo. A fala do DJ revela alguns aspectos do que poderíamos chamar de uma rede sócio-técnica (LATOUR, 2009, 2012) musical. Na ocasião, ele estava me contando sobre como costuma mixar suas produções de funk. Quando diz que deixa os graves estourarem está afirmando que ressalta as frequências mais graves da música quando está realizando a etapa de mixagem do fonograma. Ele deixa que seu processo técnico musical de mixagem dentro do estúdio seja influenciado diretamente pela forma como as pessoas estão ouvindo o funk. Ele sabe das dinâmicas dos fluxos e das dinâmicas dos paredões de som que ocupam as ruas das periferias da cidade. Quando ele valoriza o grave em seu processo técnico ele explicita a ligação entre fazer musical funk (BLACKING, 2007) e musicar local (SMALL, 1998) do funk na rua. A gravação sonora resultante do trabalho de produção do DJ é um indexe3 de sua agência (GELL, 1998), mas também uma associação de agentes que influenciam seu processo. Os sistemas de som dos carros, o fluxo de rua e os paredões de som agem sobre o DJ, pois se a gravação não ressaltar as frequências graves ela não tem peso quando é tocada nos sistemas de som de funk de rua. A compreensão das agências sociais do funk nos leva a percorrer essa rede de agentes que atravessam estúdios de gravação, computadores, programas de finalização de áudio, sistemas de som, funkeiros, bailes de favela, etc. Este artigo vai apresentar alguns resultados da observação do funk nas ruas de Heliópolis onde dezenas de paredões de som em alto volume tocam todos os finais de semana4. A dinâmica dos paredões de som é bem diferente das dinâmicas dos bailes funk que Hermano Vianna (1987) pesquisou nos anos 80.

Vamos nos aprofundar na descrição e análise das dinâmicas sociais de fluxos de funk que encontramos em Heliópolis onde a presença dos sistemas de som em suas diversas configurações é central. Proponho tratarmos esses sistemas de som como agentes sociais não-humanos quedemarcam sonoramente a favela enquanto localidade. Estamos aqui trabalhando com o conceito de agente social proposto pelo antropólogo Alfred Gell em seu “Art and Agency” (1998). E a ênfase na agência dos paredões de som é inspirada na coletânea “Thinking Through Things – Theorising artefacts ethnographically” (2007) organizada por Amiria Henare, Martin Holbraad e Sari Wastell. Pensar através das coisas no nosso caso é uma experimentação com pensar o social através dos sistemas de som. O artigo também pretende contribuir para os estudos do “musicar” (SMALL, 1998) contemporâneo descrevendo algumas das características do que podemos chamar de musicar funk. Musicar é um verbo-conceito proposto por Christopher Small (1998), estudioso neozelandês de sociomusicologia e etnomusicologia. Musicar é um verbo e é diferente de tocar um instrumento ou de fazer música. É outra coisa.

“Musicar é tomar parte, com qualquer capacidade, em uma performance musical, não importa se performando, escutando, ensaiando ou praticando, fornecendo material para a performance (o que é chamado compor), ou dançando. Nós podemos as vezes, até estender seu significado ao que a pessoa que está vendendo os tickets na porta está fazendo, ou ao homem forte que transporta o piano e a bateria, ou aos roadies que arrumam os instrumentos e realizam as passagens de som, ou aos faxineiros que limpam tudo depois que todos foram embora. Todos eles estão contribuindo para a natureza do evento que é uma performance musical.” (SMALL, 1998:9, tradução minha). 5

ESCUTANDO HELIÓPOLIS

“O funk em Heliópolis hoje se tornou a musicalidade que todas as pessoas escutam, umas adoram, muitas pessoas gostam demais, outras já não se identificam, mas todos ouvem, porque é o som alto, né! Parece que o funk para ser ouvido ele precisa estar aqui numa sonoridade alta. Então, por isso que eu digo que umas pessoas se identificam, outras pessoas não, mas todo mundo ouve o funk.” (Donizete Bomfim, o Doni, morador de Heliópolis, 01/03/2018).

“O Helipa é a vitrine do funk. Um exemplo, o MC Don Juan, ninguém conhecia o MC Don Juan, depois que ele gravou aquela música (cantando) – ‘Aqui no Helipa confesso tu tem moral, vinha aqui na favela pra sentá no…’A música foi até para a Globo, tá ligado! Você tira uma proporção do tamanho da comunidade, e de como a comunidade abraça o funk.” (MC Lanzinho, morador de Heliópolis, 15/01/2018).

Eu sabia que para me aprofundar no entendimento do universo do funk em São Paulo, precisaria fazer pesquisa de campo imersiva num bairro da periferia onde o funk fosse consumido pelas ruas. Em 2016, primeiro ano dessa pesquisa, dois bairros se mostraram muito importantes para poder vivenciar essa cultura musical de rua – Paraisópolis com o Baile da DZ7 (Zona Sul) e Heliópolis com o Baile do Helipa (Zona Leste). Os bailes dessas duas localidades são considerados os mais famosos, tão famosos que aparecem em letras de funk de diversos MCs diferentes. Em Setembro de 2016, tive a oportunidade de conhecer Heliópolis com uma conhecida, Maria Fernanda Vomero, que trabalhava na CIA de Teatro Heliópolis ministrando oficinas com os atores do grupo. Nesse dia, conheci aquele que se tornaria meu anfitrião e principal interlocutor dentro de Heliópolis, o Donizete Bomfim, conhecido como Doni – ator, produtor, cinegrafista, editor de filmes – que trabalhava tanto no teatro de Heliópolis quanto no Cine Favela. Depois dessa primeira visita em Setembro, mantive contato com o Doni por telefone até o fim do ano de 2016. Fiz uma visita em Dezembro, para almoçar com ele e conversar um pouco sobre meus planos de morar em Heliópolis para estudar a cultura funk. Perguntei se ele conhecia alguém que me alugaria um quarto e para minha sorte ele estava disposto a alugar um quartinho na laje de sua casa. Planejei com o Doni minha primeira imersão para Março de 2017.

O bairro de Heliópolis é tão grande e complexo que não é exatamente um bairro, é uma cidade dentro da cidade. É considerado uma das maiores favelas do Brasil6, sendo hoje oficialmente nomeado como Cidade Nova Heliópolis. Suas origens remontam ocupações do início dos anos 70, quando famílias de imigrantes nordestinos foram morar na área próxima ao Hospital Heliópolis, construído pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, em 1969. O Hospital Heliópolis é um dos principais equipamentos urbanos do bairro. Nas minhas estadias, pude perceber que o Instituto Baccarelli e o CEU Heliópolis, ambos localizados na Estrada das Lágrimas, são outros importantes equipamentos que formam uma mancha (MAGNANI, 1996, 2002, 2012) de educação e cultura. O Cine Favela e a UNAS (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região) são outros equipamentos importantes do bairro.

Além desses equipamentos, me chamou atenção a presença massiva das sedes dos times de futebol locais. Os inúmeros clubes de futebol poderiam ser pensados como formando um circuito do futebol de várzea de Heliópolis, inseridos num circuito mais amplo dos times de toda cidade. Eu fui informado de que existem mais de 40 times no bairro, cuja presença é marcante nos figurinos dos jovens moradores que exibem seus uniformes diariamente. Eu mesmo, acabei comprando uma camiseta e um adesivo do Ratatá (dizem que com um adesivo do Ratatá no carro ninguém te rouba)7, um dos principais da região. É que comecei a aprofundar relações com o local, comecei a conhecer a quebrada8, comecei a fazer parte do pedaçoindo na Ratatá Folia, festa de rua promovida pelo time pela primeira vez, no carnaval do ano de 2017. Para chegar ao funk, tive que começar pelo carnaval e tive que “virar” Ratatá. Ao longo do tempo, meu pedaço foi se configurando como as ruas ao redor da casa do Doni (Rua dos Esportes e Rua Adriana), o Cine Favela (Rua do Pacificador) e a Barbearia do Lanzinho (que pertence ao MC Lanzinho, importante MC de funk da quebrada). Para minha sorte, nessa região aconteceram muitos fluxos de funk, fenômeno típico desse universo musical cuja descrição geral apresento a seguir.

FLUXO FUNK

“O fluxo é um jeito de se divertir. Tem gente que paga R$ 100 só para entrar numa balada. Com R$ 100 você faz a festa do fluxo. Sei que fica ruim para quem quer dormir na região, mas também virou uma fonte de renda para a comunidade” (Entrevista com MC João, disponível em: http://g1.globo.com/musica/noticia/2016/01/baile-de- favela-muda-vida-de-mc-joao-que-sustenta-familia- desde-os-17-anos.html).

O fluxo de funk é uma aglomeração festiva de rua formada de modo espontâneo a partir da ativação elétrica de paredões de som, sistemas de som fixos customizados, sistemas de som automotivos customizados e/ou sistemas de som de fábrica operando em alto volume. Por acontecer na rua, o fluxo de funk é aberto e gratuito, o que tem uma influência na forma como a música funk se propaga. Por exemplo, é muito raro haver espaço para um MC se apresentar ao vivo num fluxo, justamente pela impossibilidade de se cobrar um ingresso para pagar o cachê do artista.9 Como é aberto, outros sistemas de som podem ser ligados numa mesma rua, um ao lado do outro, construindo aquela paisagem sonora (SCHAFER, 2011)10 que comentei anteriormente, composta de diversas músicas tocadas ao mesmo tempo.

O nome fluxo revela uma característica importante desse tipo de baile de favela – o fluxo ou a circulação de pessoas, motos e carros. Quando a largura da rua permite, a dinâmica do fluxo é marcada pela circulação das pessoas, a pé ou devidamente motorizadas. O ronco das motos e dos carros é marcante. Os jovens passam bem devagar acelerando os motores e com os sistemas de som ligados. Outra característica importante do fluxo é a capacidade de se dispersar rapidamente em caso de repressão policial, quando a polícia “molha o baile”11, o que é bastante comum. O fluxo pode se formar e se desmanchar com relativa rapidez. Ele pode acontecer vários finais de semana seguidos numa mesma rua, mas pode também variar de local caso a polícia passe a reprimir com mais frequência seu acontecimento num ponto específico.

Em Heliópolis, os fluxos muitas vezes fecham as ruas e ruelas onde acontecem. No auge da noite, torna-se difícil atravessá-los. Muitas vezes tive que dar voltas por outras ruas, contornando o quarteirão, para conseguir chegar de uma borda a outra do fluxo. Difícil permanecer no meio de um fluxo, na parte central. Nos trechos mais cheios do fluxo é difícil dançar, o espaço para dança é reduzido quando comparado ao espaço que um baile em local fechado oferece. Normalmente, eu observava nas bordas e fazia algumas caminhadas indo e voltando de uma ponta a outra. Os frequentadores em sua maioria são pessoas na faixa etária de 15 a 25 anos. Eles bebem, dançam, paqueram, cheiram lança perfume, fumam maconha e ficam na rua horas ouvindo o grave que explode dos paredões sonoros e sons automotivos. Os alto falantes responsáveis pelas frequências graves são característica marcante dos sistemas de som do mundo do funk e mexem com nosso corpo que vivencia o fluxo.

O funk putaria é o estilo predominante atualmente, ou seja, é o “estilodamoda” como MCs costumam dizer. As letras falam de forma bastante direta e explícita sobre sexo. Os sistemas de som dos fluxos amplificam esse discurso sexual explícito madrugada adentro. Entretanto, curiosamente, nos fluxos que presenciei, raramente vi os frequentadores se beijarem. Não vi nenhuma garota sendo assediada de alguma forma que poderia ser considerada desrespeitosa ou violenta. Importante observar que apesar das letras falarem de sexo o tempo todo, as pessoas na rua estão bebendo, dançando, flertando mas não estão fazendo sexo como uma parte da opinião pública costuma afirmar sobre os fluxos de funk. Um frequentador assíduo de bailes funk, o jovem youtuberHiiits (23 anos), me disse que “o baile não é bom pra pegar ninguém, nunca arrumei namorada em baile.” As meninas dançam a coreografia característica do funk caracterizada por uma movimentação de quadril que pode remeter a um ato sexual, mas é uma mímica rítmica ou uma representação corporal de um ato; não é o ato em si. Essa percepção da dança no funk como uma dança sensual aparece no relato do antropólogo Gilberto Geribola Moreno:

“Em volta de cada carro, rapazes e moças dançam freneticamente. As moças exploram toda sorte de gesto sensuais, caprichando no rebolado, acentuando os movimentos dos quadris, exercitando uma performance que remete ao ato sexual.” (MORENO, 2011: 7-8).

Nos fluxos que presenciei, as meninas costumam dançar mais que os meninos, e ambos passam boa parte da festa bebendo, cheirando lança-perfume e ouvindo o som que ecoa dos paredões e dos carros. Não observei o que poderia ser chamado de uma dança frenética. O consumo das drogas citadas se mostrava mais frenético do que a dança.

PAREDÃO DE SOM NA RUA DOS ESPORTES

“Se eu tiver que passar fome, deixar de comprar algo para comer, para ver minha música tocando num carro, para ver minha música nas ruas tá ligado! Eu vou fazer de tudo para ela estar na rua tocando no som de carro, para as pessoas admirarem meu trabalho, para eu ter o reconhecimento das pessoas no mundo do funk.” (MC Lanzinho, 15/01/2018).

A casa onde fui morar em Heliópolis fica na Rua dos Esportes. Nessa casa, moram Doni e sua mãe Dona Maria. Em Março, eles alugavam um quarto com banheiro no piso superior para uma moça chamada Nice. Eu aluguei um quarto sem banheiro que era usado como “QG” do Doni, como ele costuma dizer. No piso de baixo, uma garagem com vaga para um carro, uma sala com TV, um quarto onde Doni dorme com a mãe, uma cozinha e um banheiro. Dona Maria, mãe de Doni, nunca quis gravar uma entrevista comigo, mas em nossas conversas aprendi muito sobre Heliópolis. Ela veio para São Paulo da Bahia aos 20 anos, foi morar na Vila Mariana trabalhando numa fábrica doméstica de bijuterias. Depois foi morar na zona sul, quando casou com seu ex- marido, pai de Doni, motorista de ônibus. Eles vieram pra Heliópolis, pelas contas dela, em 1987. “Nessa época, já era tudo casa, não tinha barraco. Mas, as ruas eram de terra e a violência era maior.” As festas de rua ainda não aconteciam com tanta frequência, e o crime era mais visível. Haviam mais mortes por homicídio. Pelo que ela contou, foram nos últimos 10 anos que o bairro se tornou mais tranquilo em relação à violência. Ela lembra de dias em que saía de casa e encontrava defuntos no chão perto de sua casa.

Éramos vizinhos de um bar chamado Hangar, comandado por um jovem chamado Emerson. O bar ficava aberto todos os dias, vendia bebidas em geral, salgadinhos, e a especialidade da casa, os pastéis feitos pela Dona Érica mãe do Emerson. Segundo Doni me contou, Emerson começou a alugar um paredão de som em alguns finais de semana para colocar música na frente do seu bar e atrair a clientela. Na primeira vez, não veio muita gente porque ele não divulgou tanto. No final de semana do carnaval, ele lotou a rua com um paredão de som em alto volume tocando funk e forró eletrônico. No dia 04 de março de 2017, um sábado, presenciei pela primeira vez a dinâmica sócio-musical da formação de um fluxo de funk na rua dos Esportes, bem em frente ao meu quarto, em torno do um paredão de som chamado Samuca, que Emerson havia colocado.

“Às 17:00 horas da tarde Emerson, filho do dono do bar Hangar vizinho à casa do Doni ligou um paredão de som. Começou tocando forró, alternou com funk. Às 18:00 horas aproximadamente desci e troquei uma ideia rápida com ele, o volume alto do som não permite muita conversa. Descobri que ele tem pendrivescom seleções de funks. O pendrive já vem com o paredão. Tem uma cabine de comando do paredão, com um monitor onde ele equaliza o som e pode variar as músicas que estão no pendrive. Fiquei observando um pouco. A rua ainda estava vazia. Choveu. Tomei uma coca cola no mercado da frente. Doni disse que eles ligaram o paredão de som pra ajudar nas vendas do bar. Por volta das 22:00 horas, e o forró eletrônico do paredão estava bombando bem alto e a partir das 23:00 horas, começou a tocar funk. Toca mais funk putaria do que outros estilos. Não está cheio ainda. O som é bem na frente do meu quarto. Escrevo agora no calor do momento, ouvindo e observando da minha janela. Não está cheio, mas já tem um grupo de cerca de oito garotas dançando bem em frente, do outro lado da rua. Alguns garotos e homens em frente ao bar. Um pouco mais abaixo na rua, que é uma ladeirinha, um carro com forró bombandono sistema de som disputa a espaço sonoro com o paredão; disputa, ou juntos compõem uma nova performance sonora. Emerson me disse que o equipamento de som custa uns 20 mil reais aproximadamente. Semana passada, disse que tinha um paredão de 90 mil reais, o paredão Magnata. Os sons nos carros também não são baratos e as vezes custam mais que o próprio carro. O musicar local aqui é eletrônico, é com alto-falantes, é com playlistde pendrive, é na rua, para rua, para todo mundo ouvir, quem gosta e quem não gosta é obrigado a ouvir. Os volumes são absurdamente altos. Os bares ficam abertos e a galera consome. A música ajuda nas vendas de bebidas nos bares.

Saí com Doni para andar pelas ruas ao redor. A partir das 24:00 horas, o movimento nas ruas se intensifica. A faixa etária é bem jovem, deve girar em torno de 15 a 25 anos a maioria. Os meninos todos com o cabelo raspado nas laterais e com tufos e topetes mais compridos em cima. Alguns com riscos e desenhos nas laterais. Bermudas, camisetas de time de futebol, bonés e tênis compõem o vestuário típico. As meninas de shorts bem curto e colado no corpo, com tops justos e os cabelos alisados pelo processo conhecido como escovinha.

Os paredões de som estão espalhados pela quebrada. Contei quatro paredões caminhando por alguns quarteirões próximos. Ficamos um tempo em frente a outro paredão numa rua próxima. Impressionante o volume. Ficamos ali entre as 24:00 horas até quase 01:00 hora da manhã. O movimento foi aumentando. Uma hora um carro da polícia chegou, os sons pararam. Eles ficaram uns minutos ali conversando com a galera que estava perto do carro. Segundo os comentários das pessoas eles iam “resolver”.

Reparei que nesse segundo paredão só tocava funk. Na rua dos Esportes, toca bastante forró misturado com funk. Numa outra rua toca mais forró do que funk. Os estilos básicos dos sistemas de som são esses dois: forró eletrônico e o funk. O fluxo da rua dos Esportes foi enchendo, deve ter aglomerado em torno de 200 pessoas. Acabou por volta das duas da manhã por causa da polícia. Fomos ao fluxo da rua Adriana, perto da rua dos Esportes e estava lotado. Imagino algo em torno de 1000 pessoas. Dois paredões bombando o som no talo. A dona de um bar me disse que lá têm de 15 em 15 dias e que na Rua Babalu12 rola mais gente e mais paredões. Disse que tem um paredão pra cada bar.” (Diário de Campo, Heliópolis, 05/03/2017).

Para enriquecer a descrição textual dos eventos que narro aqui e aproveitar o potencial da internet e da antropologia visual, criei uma playlist no Youtube chamada “Diário-fragmento”, composta de pequenos filmes feitos com o celular no instante das observações. Me inspirei em Walter Benjamin (1985) e (DAWSEY, 2009) para quem pequenos fragmentos somados possuem o potencial de construir narrativas significativas. Trata-se de um diário de campo fílmico produzido para ser acompanhado junto com a leitura.13

Logo no início do filme, vemos o jovem Emerson de bermuda, chinelo e camiseta branca a frente do Paredão de Som Samuca que ele acabara de ligar tocando o funk “Vem Novinha” de MC Matheus, lançado em 2013 pelo canal de Youtube “Kings of The Ghetto”, cuja letra é um híbrido de funk ostentação com um funk mais sensual que ainda não é putaria. No corte seguinte, vemos já a noite caindo, mas a rua ainda vazia e o Paredão tocando o funk “5 Mentes” de MC Davi e MC Pedrinho, lançado em 2016, cuja letra também não é de funk putaria. Conforme vai anoitecendo, o teor das letras dos funks vão se aproximando do que conhecemos como funk putaria. Numa das cenas finais do fragmento, podemos ouvir o funk “Estremece Quando ela Desce” do grupo “Os Cretinos” que já atrai um grupo de garotas que dançam perto do Paredão Samuca. A letra pode ser classificada como um funk putaria mais leve que brinca com os movimentos corporais e indica uma coreografia de dança onde a mulher desce batendo com a “bunda no chão”. Os interlocutores quando desejam suavizar o conteúdo das letras falam que o funk é sensual, quando não se importam em suavizar eles falam em funk putaria. De modo geral, existe um estilo de funk cujas letras falam de sexo; quando falam de modo mais explícito e utilizando termos pesados são chamados de funk putaria, mas quando falam de sexo de modo menos direto e com termos mais leves são chamados de funk sensual.

“Estremece quando ela desce

Batendo a bunda no chão

Estremece quando ela desce

Batendo a bunda no chão

Estremece quando ela desce

Batendo a bunda no chão

Estremece quando ela desce

Batendo batendo batendo a bunda no chão.”

(OS CRETINOS, 2017).

De fato, pude observar que diversas músicas indicam a coreografia da mulher dançando no baile e as frequentadoras em diversos momentos seguem essas indicações de movimentos corporais. MC Lanzinho (21 anos), barbeiro e músico de Heliópolis, afirma que “o funk que tá pegando agora é esse que fala de dança, que fala pra subir e descer, não é mais o putaria pesado”. Uma das músicas mais recentes do MC, que ainda não foi lançada, segue essa linha. Klaviany Costa (30 anos), atriz moradora de Heliópolis há dezesseis anos, disse que curte funk, mas não dança nos fluxos. “Eu não conseguiria dançar no fluxo porque eu não vejo um discurso. Porque lá eu seria mais um objeto, uma mulher objetificada, um pedaço de carne, para ver qual dos caras iria me escolher para pagar uma bebiba”, afirmou Klaviany. A fala de Klaviany representa um dos pontos de vista presentes dentro da quebrada sobre os fluxos na rua – do fluxo como lugar de objetificação da mulher e da dança sexualizada como uma das expressões corporais dessa objetificação. Apesar de encontrarmos esse ponto de vista que não vê com bons olhos os rebolados de quadris ao redor dos paredões de som, o fato é que os fluxos reúnem centenas (as vezes milhares) de garotas dispostas a dançarem de modo sensual.

O figurino das garotas nessa noite era formado em sua maioria por shorts jeans curtos agarrados ao corpo, calças justas, tops justos, tênis ou sandálias. A maioria parecia ter feito escovinha nos cabelos. O figurino dos garotos era bermuda larga, camiseta (especialmente as de times de futebol), bonés e tênis. Os cabelos todos cortados bem curtos na lateral e um pouco mais compridos na parte de cima. Poucos usavam barba. De modo geral, observo que as garotas dançam mais que os garotos, mas conforme o fluxo vai enchendo fica mais difícil encontrar o espaço físico para grandes performances de dança. O paredão de som pilotado pelo jovem Emerson foi a grande atração dessa noite na rua dos Esportes. Ele atua como um agente fundamental da formação do fluxo. Ele é agente social no sentido de Gell, no sentido de gerar um evento social, gerar ou potencializar e sustentar durante a noite a aglomeração em frente ao bar Hangar até a chegada da polícia por volta das duas horas da manhã. Um diagrama inicial que representa essa cadeia de agências é o seguinte:

Paredão de Som (agente) >> Público na rua (paciente)

Mas sabemos que o paredão não age sozinho, e nesse caso a presença de Emerson é fundamental. Outra presença fundamental é a das playlistsde funk no pendrive. O pendrive aqui funciona como uma espécie de DJ automático. Fica difícil determinar quem age sobre o que quando pensamos apenas em Emerson, no paredão e na lista de músicas do pendrive. Acionando Latour, podemos considerar Emerson – paredão sonoro Samuca – pendrivesde funk e forró como um coletivo de agentes sócio-musicais na rua dos Esportes constituintes do musicar local de Heliópolis. Eles são o ponto de partida do fluxo que se formou naquela noite. O Emerson sem o paredão era um dono de bar comum. O Emerson com o paredão estacionado na frente era um dono de bar desempenhando uma performance musical elétrica de funk na rua atraindo público. A massa sonora produzida pelo coletivo Emerson-paredão-pendrive de funk constrói essa paisagem sonora típica de Heliópolis aos finais de semana.

Foto 1: Paredão de Som Samuca, na rua dos Esportes, 04/03/17.

Segundo Emerson me informou, ele emprestou o paredão de seu amigo João Dantas, jovem montador de equipamentos sonoros e importante referência dos paredões de Heliópolis, para ajudar a melhorar o consumo em seu bar. João Dantas vive de alugar esses paredões, mas no caso de Emerson fez por amizade. A conta de Emerson é simples: paredão sonoro = som alto = funk e forró eletrônico nas ruas = aglomeração de jovens na noite dispostos a consumir no bar. Essa é uma agência social fundamental do funk em Heliópolis, produzir aglomerações de jovens aumentando o consumo de bebidas nos bares locais. Muitos dos donos de bar em Heliópolis utilizam esse artifício do paredão sonoro para incrementar suas vendas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – O PAREDÃO DE SOM COMO AGENTE SOCIAL

Nessa situação que estamos analisando, o funk ecoa através do paredão de som. Cada música que toca é uma obra de arte. Essas obras de arte podem ser consideradas como indexes e são amplificadas no paredão de som que também funciona como indexe. Lembrando que os indexes em Gell são as entidades materiais que motivam inferências abdutivas através das quais é possível identificar um nexo causal de agências sociais. O público na rua que vai se aglomerando ao redor seria o recipiente da agência dessa massa sonora amplificada. A expressão a seguir tenta diagramar a cadeia de agência social utilizando as categorias propostas por Alfred Gell:

Música Funk (indexe 1) + Paredão de Som (indexe 2) >> Público ouvinte na rua (recipiente)

Foto 2: Ao redor do paredão de som “Samuca”, o público começa a se aglomerar, Heliópolis, 04/03/2017.

Leia-se nela que a música e o paredão são agentes sociais que agem sobre um grupo de pessoas (recipiente da agência) que se aglomera na Rua dos Esportes, nessa noite de 04/03/2017. Mas nessa situação, teríamos que levar em conta a agência fundamental do Emerson, dono do bar. Nas categorias de Gell, não há espaço para Emerson, posto que ele não é nem artista, nem indexe, nem recipiente e nem protótipo14. Entretanto, ele me parece ser o agente primário nesse evento15. Uma expressão mais completa da cadeia de agências sociais que encontramos aqui seria: Emerson (agente primário) >> Música Funk (indexe 1) + Paredãode Som (indexe 2) >> Público ouvinte na rua(paciente) 

Mas esse diagrama ainda não é satisfatório para dar conta de descrever a formação do fluxo de funk dessa noite. As pessoas na rua que estou chamando de “público ouvinte” também são fundamentais para o fluxo de funk acontecer. Nem Emerson, nem o Paredão e nem o Bar permaneceriam ativados noite adentro se as pessoas não se reunissem ao redor do som. Nesse sentido, o público também age, as pessoas que estão dançando, bebendo, se divertindo também são fundamentais na cadeia de agências possíveis. O fluxo funk da rua dos Esportes se apresenta como essa composição Emerson–Bar Hangar–Paredão Samuca–Funk (playlist no pendrive)–Público ouvinte. Cada parte humana desse coletivo possui intencionalidades ou motivações mais visíveis. Emerson quer vender; o público quer se divertir. As partes não-humanas permitem que as motivações de Emerson e do público se realizem e agenciam motivações humanas outras que não se fazem ali presentes corporalmente falando, como o desejo de sucesso dos MCs de Funk que ecoam no Paredão e que a fala de MC Lanzinho na abertura desse tópico expressa muito bem. O Paredão transporta e amplifica as agências criativas de cada MC, cujas músicas estão contidas no pendrive.

Busquei nesse artigo apresentar a etnografia dos fluxos funk de Heliópolis focando na agência social dos paredões de som que se apresentam como não-humanos fundamentais para ativar as aglomerações festivas de rua que caracterizam o universo do funk. O musicar funk se mostrou um musicar formado pelo coletivo Donos de bar-Sistema de som-playlist de funk via pendrive-Público ouvinte. Um musicar que é eletrônico, na rua, com uma faixa etária jovem. Os sistemas de som tocam em altíssimo volume e produzem uma paisagem sonora que demarcaafavelamusicalmente. A favela é um território físico e geográfico, mas também sonoro-musical. É o território do funk de rua.

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GELL, Alfred. Art and Agency: An Anthropological Theory. New York: Oxford University Press Inc., 1998.

HENARE, Armiria, HOLBRAAD, Martin & WASTELL, Sari, ThinkingThroughThings:Theorisingartefactsethnographically,New York, Routledge, 2007.

HOOD, Mantle. “The challenge of bimusicality”. Ethnomusicology.

Vol. 4, No. 2. p. 55-59, 1960.

LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. São Paulo: Editora 34, 2009.

LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: EDUFBA-EDUSC, 2012.

MAGNANI, José Guilherme C.. “Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole”. In: MAGNANI, José Guilherme C.; TORRES, Lilian de Lucca (orgs.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. São Paulo: Edusp, 1996.

MAGNANI, José Guilherme C..“De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. In: Revista brasileira de ciências sociais, vol. 17,

n. 49. São Paulo: jun. 2002.

MAGNANI, José Guilherme C.. Da Periferia ao Centro – trajetórias depesquisaemantropologiaurbana. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.

MAGNANI, J. Guilherme “A Copa do Povo e o Vale do Lírio: duas experiências sob o olhar etnográfico ‘de perto e de dentro’” In Áltera– Revista de Antropologia, João Pessoa, v. 1, n. 1, p. 112-143, jul./dez. 2015.

MALVASI, Paulo Arthur. ” O domínio do mental e a vida loka: uma análise do dispositivo das drogas nas periferias de São Paulo”. In: ContemporâneaRevistadeSociologiadaUFSCAR.Vol.3. No 2. São Carlos, 2013.

MORENO, Gilberto Geribola. “Novinhas, malandras e cachorras: jovens, funk e sexualidade” In: Ponto Urbe, no 9, USP, São Paulo, 2011.

Notas de Rodapé:

1 Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil.

2 Kick é a palavra inglesa para chute. Na música, kick normalmente é termo para o bumbo da bateria, que é a peça mais grave e normalmente é tocada com um pedal no pé. O baterista “chuta” o bumbo com o pedal, por isso kick. Na produção musical do funk, kick é toda e qualquer peça percussiva grave, que ocupe as frequências mais graves.

3 O indexe é um dos termos que Alfred Gell propõe em sua teoria da agência social das obras de arte. Index seria a coisa física, visível, que permite uma operação cognitiva que ele identifica como a “abdução de agência” (the abduction of agency). Em outras palavras, o indexe é a manifestação física da agência artística que permite uma inferência abdutiva. No presente caso, proponho pensar uma gravação musical de funk como algo que permite identificarmos a agência criativa de DJs e MCs; a gravação é a manifestação física que nos permite inferir a fonte da agência.

4 Eles tocam além do funk, muito forró eletrônico, ritmo preferido de grande parte dos moradores. A presença nordestina de migrantes e descendentes no bairro é fortíssima. O forró eletrônico expressa essa força nordestina do bairro. Lembrei aqui da noção de “comunidade musical” (SHELEMAY, 2011) como uma comunidade onde a música agencia a permanência e manutenção dos laços sociais, em especial em situações de migração.

5 “To music is to take part, in any capacity, in a musical performance, whether by performing, by listening, by rehearsing or practicing, by providing material for performance (what is called composing), or by dancing. We might at times even extend its meaning to what the person is doing who takes the tickets at the door or the hefty men who shift the piano and the drums or the roadies who set up the instruments and carry out the sound checks or the cleaners who clean up after everyone else has gone. They, too, are all contributing to the nature of the event that is a musical performance.” (SMALL, 1998:9)

6 Segundo matéria publicada em Set/2016 pela revista EXAME, Heliópolis aparece em 10a no ranking de favelas mais populosas com 41 mil habitantes. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/as-10-maiores-e-mais-impressionantes-favelas-do-brasil/

7 O adesivo do Ratatá emerge como uma espécie de ícone de identificação com a localidade que me protege de atos criminosos dentro da favela. Não temos espaço aqui, para discutirmos a complexa realidade do crime organizado nas favelas paulistas. Para uma discussão detalhada sobre crime organizado e periferia em São Paulo, recomendo os trabalhos de Gabriel Feltran (2013). Para uma discussão detalhada sobre crime e funk, recomendo os trabalhos de Adriana Facina (2010 e 2014).

8 Quebrada é uma das denominações que a favela recebe no discurso nativo. Quebrada pode significar favela, periferia, comunidade e/ou bairro. Paulo Artur Malvasi (2013), chama de “dialeto da vida loka” a linguagem utilizada pelos jovens moradores de bairros periféricos.

9 Muitos MCs que conheci falaram dessa questão do fluxo de rua competir com os shows prejudicando seus trabalhos artísticos. Ao mesmo tempo, os MCs querem ouvir suas músicas tocando na rua nos paredões de som e nos sons dos carros. Seus clipes retratam os fluxos de rua. É uma relação contraditória.

10 Utilizo aqui o conceito de paisagem sonora cunhado por Raymond Murray Schafer (2011).

11 Molhar nesse caso significa a intervenção da polícia no evento. A polícia pode molhar um baile e pode molhar uma “biqueira”. Biqueira é um dos nomes que se dá ao ponto onde se vendem drogas conhecido também como “lojinha” ou “boca” (MALVASI, 2011).

12 Alguns dias depois localizei a rua conhecida como Babalu e soube que os fluxos funk tinham sido duramente reprimidos nos últimos meses. Não estavam mais ocorrendo como antigamente. Mesmo assim, foi interessante observar na rua esvaziada pela ação da polícia militar a presença de paredões de som dentro dos bares.

13 A playlist é composta de 23 pequenos filmes, com duração que variam entre 50 segundos a dez minutos, e que buscam registrar minha vivência no bairro de Heliópolis. Traz cenas do cotidiano, entrevistas, andanças pelos fluxos de funk, cenas dos paredões de som e dos carros com sistemas de som. Para exemplificar o trecho do diário de campo escrito acima, convido o leitor a assistir ao seguinte fragmento fílmico para completar a descrição do fluxo deste tópico: https://www.youtube.com/watch?v=- sY A VwHO9V o&index=4&list=PLFEtmli40X78cvwPIloiH1oZfkC4uWRNG .

14 Esses são os quatro termos da teoria de Gell: artista, indexe, recipiente e protótipo.

15 Importante notar que nessa teoria da agência, os agentes e os recipientes da agência estão o tempo todo mudando. Ninguém ou nada está o tempo todo na posição de agir, e nem na posição de receber agência de algo. As posições são intercambiáveis e dinâmicas.

Emblemas – Revista da Unidade Acadêmica Especial de História e Ciências Sociais – UFG/CAC

Discos em construção – Etnografia dentro de estúdios – Revista Cadernos de Campo

Por que eles ainda gravam? Discos e artistas em ação

Esta dissertação une antropologia e música para analisar processos contemporâneos de produção de discos e músicos na cidade de São Paulo. A questão central que permeia todo texto é o seguinte: por que ainda se grava disco na era da música digital compartilhada no ciberespaço através da internet?

Em outras palavras, por que no mesmo período em que as vendas de discos físicos (CDs e discos de vinil) diminuíram, colocando as grandes companhias fonográficas numa crise sem precedentes, um grupo de compositores urbanos passou a produzir e lançar discos físicos de forma autônoma, contínua e intensa? Acompanhando processos criativos e produtivos de três compositores paulistas – Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Tatá Aeroplano –, o disco emergiu como agente fundamental realizando as mediações que possibilitam aos compositores se constituírem enquanto artistas, construindo uma imagem pública (e uma sonoridade), e conquistando reconhecimento coletivo. O mesmo processo de digitalização que desencadeou a pirataria musical na internet, desencadeou um curto-circuito entre arte e técnica no fazer musical, e um curto-circuito entre artista e público, reconfigurando o lugar social dos discos para esse grupo de compositores que ainda faz questão de gravar e lançar músicas próprias.
Dissertação de Mestrado / Autor: Paulo Menotti Del Picchia

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